Que
adiantava aquela vida absorta numa dimensão paralela, se não a
tinha? Qual a emoção de viver em meio ao luxo, em meio ao lixo, de
viver em um mundo cheio, se o único lugar onde gostaria de estar era
naquele abraço, naquele beijo, naquela cama dividida ao meio. O por
que de uma existência tão plural, se seu número almejado sequer
passava do dois de um casal?
Vagava
naquela noite, dirigindo seu carro portentoso a perguntar-se sobre
essas questões pontuais da vida que acertam qualquer ser vivo em
momentos oportunos, e buscando uma resposta em cada farol que o
cruzava, em cada buzina que ouvia, em cada árvore que rasgava veloz
os vidros laterais de seu automóvel. Não achou.
Cada
vez que a lamentação profunda do saxofone daquele blues triste que
ouvia, soava no som do carro, ele afundava mais o pé no acelerador,
rumo a um futuro incerto de uma vida incerta. Até mesmo o sentido
daquela melodia não existia, como não existiam os sons ao seu
redor. O mundo resumia-se a uma paisagem sem qualquer extração.
Estava vazio, porque seu coração assim estava.
Lembrou-se
com um carinho irresoluto de cada afago, cada carinho. Das vezes com
que mexeu na orelha dela e ajeitou o brinco ao ouvi-la reclamar do
desalinho. Lembrou das noites comendo besterias e olhando filmes em
preto e branco. Lembrou-se das pipocas e do cinema, das caminhadas
naquele parque, dos sorvetes no verão. Lembrou-se de tudo como quem
não quer esquecer. Mas ele queria.
Imerso
naqueles pensamentos nostálgicos ele seguia, mas querendo acordar.
Queria acordar para viver uma vida que escolheu viver, um futuro que
pretendeu desfrutar, sem pensar no passado ou almejar um futuro. O
que ele queria era apenas o presente, só ele e nada mais.
Foi
o freio do carro que o fez voltar à vida. Quando aquele vulto
atirou-se em frente ao seu carro, atirou o pé ao freio com um
reflexo que não condizia com a imersão de seus pensamentos, e
evitou o que seria uma tragédia. O susto lhe trouxe de volta à
vida, ao mundo.
Estacionou
o carro naquela rua que lembrava uma alameda e que, àquela altura da
madrugada apresentava uma aparência um tanto funesta, e foi ao
encontro de quem o havia acordado, descobrindo assim, o que não
poderia ser diferente: era uma mulher (sempre elas as responsáveis
por nos tirar e colocar num mundo de sonhos).
Ao
avistar a figura que, altiva e sem qualquer nervosismo, permanecia no
meio da rua, ele foi, outra vez, arrebatado. Era a mulher mais linda
que havia visto em toda sua vida. Os cabelos negros escorriam sobre
os ombos, acentuando o azul daqueles olhos, que destacavam-se ainda
mais com a tez daquela pele alva. Os traços bem feitos, as curvas
poderosas, aquela mulher era o que qualquer homem busca em um
exterior. Mas havia um brilho naqueles olhos, um leve sorriso de
canto de boca que garantia a ele: essa mulher é um sonho.
Ao
perguntar se ela estava bem, ainda um pouco embasbacado com sua
aparência, ele enrolou-se nas próprias palavras, mas, aos poucos,
se fez entender. Ela percebeu o seu embaraço, mas agiu como se nada
fosse e disse que sim, estava bem. Nem sequer se assustara.
Ele
se aproximou. Havia um ímã que o atraí até ela. Sentiu cheiro de
jasmim.
Ela
o olhava fixamente com aqueles olhos mais azuis que o infinito,
analisando cada gesto de insegurança que ele transmitia.
-
Solta-te, rapaz. Veio até aqui e não sabe como agir? Eis que não
é, então, aquele que busco? Claro que é. Te esperei pelo tempo
necessário e tu está aqui pra ser meu, e pra me ter. Sabes,
portanto, quanto tempo te esperei? Desde quando estou aqui? E de quão
longe venho apenas para te receber?
Perdeu-se
ainda mais o pobre sujeito ao ser arrebatado por aquelas perguntas.
“Quem é essa mulher?”. “Louca?”. “Linda”. “Que cheiro
de jasmim!”.
Ela
deu um único passo e o alcançou, com a mão estendida e
acariciou-lhe a cabeça ao mesmo tempo que lhe tascou um beijo
daqueles que preenchem filmes franceses. Ao passo que tudo acontecia,
ela, ao mesmo tempo despia-se com um furor típico da mais devassa
das criaturas.
Sem
saber como agir, ele apenas deixava-se levar por aquela criatura
iluminada. Cada movimento, cada gesto, era controlado por ela.
Os
olhos azuis pegaram-lhe a mão e o levaram para um parque que estava
ao lado daquela alameda funesta. “De onde surgiu esse parque? Como
nunca o vi antes”, pensava ao avistar, ainda que na escuridão, um
local onde as flores assumiam todas as formas. Havia tulipas,
girassóis, margaridas, orquídeas. Havia gérberas, lavanda. Havia
jasmim.
Cada
caramanchão era coberto por flores que nunca tinha visto, mas que
tornavam aquele lugar um dos mais belos que já vira na vida. E foi
ali, que, na grama molhada pelo orvalho deitou, atendendo a um
comando dela e sentiu seu corpo ser montado pela lascividade daquela
dama voraz.
Deixou-se
amar como nunca. Sentiu-se amado como nunca. Sorveu daquele momento
como quem sorve a essência da vida. Era ali que gostaria de estar
pra sempre, naqueles braços que foram feitos para abraçá-lo.
Ao terminar aquele momento de fulgor, ela, deitada em seus braços, acariciou-lhe a face e declarou com voz macia:
-
Estavas perdido até agora. Encontrei-te para ti mesmo. Cumpri meu
papel e daqui por diante apenas faço-te um pedido: apenas seja. Tu
pensavas apenas no que já passou ao longo dos últimos dias da tua
vida, e de agora em diante pensas no presente, porque nesse momento
eu sou o teu presente. Aqui estou para ser o teu presente, e para que
o teu presente seja sempre o melhor momento da tua vida.
Ele
prestou atenção em tudo o que ela falava e ao pensar sobre aquilo,
adormeceu.
Acordou
sozinho em meio àquele parque que já não era parque. Encontrou-se
em meio a uma praça simples no meio de um lugar simples, ao lado de
uma rua simples e entendeu que tudo aquilo fora um sonho, ou um
devaneio. Talvez tenha bebido. Algo aconteceu e o fez despertar para
a vida no presente, a vida no hoje, a vida na essência de como a
vida deve ser. Sem reclamações, sem lamúrias, com saudades, mas
sem desejos de voltar no tempo. Aquela mulher se fora, mas pra sempre
ele haveria de sentir, no presente, aquele cheiro de jasmim.