O corpo não se movia. Tentou primeiro levantar o braço direito para
que, como fazia todas as manhãs, esfregasse com força os dois olhos, dando
início assim a mais um dia no trabalho infeliz, daquela empresa infeliz, em uma
cidade infeliz, na sua vida infeliz. Mas não conseguiu. O braço não se mexeu.
É comum que a má circulação durante
a noite devido a posição falha em que se dormiu, faça com que um braço ou uma
perna não respondam aos anseios neurológicos, e isso não assustou. O que o
assustou, e assustaria qualquer um, foi quando percebeu que não só o braço
direito, como também o esquerdo, as duas pernas, o tronco, nada se mexia,
absolutamente nada. Sequer a cabeça, o pescoço, não controlava os movimentos de
qualquer que fosse o músculo do corpo, piscando apenas automaticamente e
controlando unicamente a direção da visão.
Os pensamentos ainda lhe
pertenciam e ele procurou desesperadamente uma solução para que pudesse voltar
a se movimentar. Tivesse uma mulher, tivesse família, quiçá apenas precisaria
falar, e tudo estaria resolvido, uma médico estaria no local o examinando em poucos minutos, contudo, ele
não tinha mulher, ele não tinha filhos, ele não tinha família, e tudo isso por
uma questão de escolhas. Fora sozinho a vida toda, ou melhor, sua cama quase
nunca estava sozinha, mas seu coração era pra sempre vazio.
Percebeu que nem a voz o
acompanhava. Quando tentava falar, emitia apenas ruídos indecifráveis, ou seus
ouvidos que não funcionavam mais. Não, os ouvidos funcionavam, pois ele
escutava o som da cidade interpretando sua canção matinal que, dia após dia,
repete-se, dando vida a um frenesi desgovernado, a um abrir de olhos diário, a
um acolher pouco afável, mas sempre sincero e leal.
Tão logo entendeu que aquilo não
era um sonho, lhe veio à cabeça a clássica cena da Metamorfose, de Kafka, em Gregor
Samsa acorda e percebe ter se tornado um inseto. Haveria ele também se tornado
um inseto? Não, tendo o controle sobre a visão, conseguia ver que seu corpo
ainda existia estando apenas imóvel, inerte, mas igual.
Pensava, pensava, pensava e não
conseguia encontrar solução para aquilo. Ninguém daria falta dele naquele
emprego onde ninguém dava falta de ninguém ao exercer diariamente suas mesmas tarefas,
como robôs que temem apenas o fim da vida e não o seu decorrer. Quem notaria
que ele, um dos tantos seres insignificantes que habitam o globo, não estaria
desempenhando seu papel previsível?
Ele não poderia contar com
ninguém, ele não poderia contar com um ombro amigo, ninguém estaria ali para
ele, como ninguém estivera ali para ele ao longo de seus quase 50 anos de vida.
Uma vida puída e que agora ameaçava chegar ao fim, conotando uma existência
falida e sem obra qualquer. Ele haveria de render-se ao fim como vivera: sendo
um nada.
Enquanto a morte não chegava - e ela viria em breve, montada num cavalo
preto feito carvão – ele exercia a única função que a vida toda soubera usar
mesmo sem saber externar: pensou. Ele era um ser extremamente pensante,
contudo, não executante. Ele matutava, planejava, organizava mentalmente, mas
nunca, jamais fazia. Era como se sua estratégia de vida fosse desligada da
atuação, assim como agora seu corpo estava, por qualquer falha que fosse,
desligado do seu comando. Ele pensou
muito ao longo da vida e viveu pouco. Não que tenha feito pouca coisa, não era
isso. Acontece que ele viveu apenas pra si mesmo, viveu apenas buscando sanar
as próprias vontades, os próprios instintos, como um animal irracional – logo ele, um ser tão
pensante. Enquanto isso acontecia, ele deixou pra trás os verdadeiros conceitos
do ser. Ele esqueceu de compartilhar sorrisos, de externar sentimentos, de
afagar, de brincar...de amar.
Ali, imóvel naquela cama, ele chegou a
conclusão de que, ao fim e ao cabo de tudo, nossa vida caminha assim, como
alguém que não é capaz de mover o próprio corpo, fadada aos resultados de nossas
próprias escolhas, resumida ao destino de cada caminho que tomamos. Ele
percebeu, vendo-se naquela situação, que tudo dependia só dele até momentos atrás,
e agora não dependia mais, agora, o jogo estava perdido como nunca estivera
antes, e cabia a ele apenas esperar que a dureza da morte o amordaçasse
definitivamente.
Ele entendeu que, durante anos e
anos, esteve preso apenas dentro da própria cabeça, e não haveria morte mais
condizente com ele do que essa: preso dentro da própria cabeça. Preso sem
conseguir tomar qualquer decisão, preso esperando que, qualquer que fosse o
fim, viesse logo e não dependesse de mais ninguém, por que depender dos outros,
ele pensou: “é estar numa cama, sem conseguir mexer o corpo, imóvel e inerte.
Depender da escolha e da decisão dos outros, é não conseguir sequer falar que
poderia ter sido diferente”.
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