sexta-feira, 29 de abril de 2011

Algo errado com Lígia

Lígia sentia, alguma coisa estava errada em seu corpo. Sentia-se enjoada, pesada, até a depressão parecia atingi-la naquela manhã. Já sabia o que estava acontecendo.

Tinha preguiça, a Lígia, de sair da cama, mas era necessário fazer a constatação final. Errara e agora, tinha certeza, era tarde demais para reparar o fato sucedido. Encontrou forças extraídas dos escaninhos de sua alma e debruçou-se na cama. Sentou-se logo em seguida.

A alguns metros dali, jazia um espelho e era até ele que Lígia almejava chegar. Concentrou os esforços, o enjoo só poderia ter um significado, não costumava ter aquele tipo de acesso. Pé por pé arrastou-se até a frente do espelho e mesmo antes de chegar lá, teve como intuito levar a mão a barriga, ali fez a constatação final, nem precisaria do espelho. Era o seu corpo, sua vida, seu enjoo, e o pequeno calombo que formava-se em sua barriga deixava claro o sinal do havia acontecido.

Em frente ao espelho parou, analisou-se, tal qual as mulheres sensíveis sempre fazem. Achou-se feia, tal qual as mulheres fazem. Achou-se gorda, tal qual as mulheres sempre fazem. A constatação estava feita. Assim que levantou um pouco a blusa do pijama e viu que de fato, aquele calombo resumia-se a sua barriga.

Voltou à cama, alguma coisa precisava ser feita. Sentou-se mais uma vez. Procurou o celular que deveria estar em algum lugar em meio às cobertas. Revirou a cama e o achou embaixo do travesseiro. Segurou o aparelho na mão e antes de abri-lo. Pensou no que faria, para quem ligaria. Um médico!, claro, um médico era o ideal. Precisava de uma consulta com um especialista, mas antes era necessário ligar para o seu namorado, afinal a culpa era dele. Ele fora o responsável por aquilo.

Ligou para ele, o namorado, o grande culpado. Ele que insistira em fazer aquilo que ela não queria e sempre havia dito a ele. O telefone chamou uma, duas, três vezes e ele atendeu:

- Oi Lígia. Como tu está meu amor?
- Olha aqui, Carlos Alberto, e nunca mais, ouviu bem, nunca mais volto a comer esses malditos bolinhos de batata que a tua mãe faz.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Pobre Isaias

Sentado ali, na mesma cadeira, apoiado na mesma mesa, digitando no mesmo teclado de sempre, usando os mesmos óculos e o mesmo suéter de caximir vermelho que sempre usou, ele via a vida passar. Via a vida passar por detrás das grossas lentes dos óculos que o protegiam do astigmatismo em grau baixo, miscigenado à miopia elevada. Atrás do mesmo guichê, digitava todos os dias, exaustivamente os números de códigos de barras das contas que as milhares de pessoas que iam ao banco onde trabalhava insistiam em pagar.

Eis que um dia uma frase mudou toda a vida de Isaias. Frase essa proferida pelas cordas vocais de quem ele menos esperava, daquele que fora seu carrasco de uma vida, seu gerente geral, o Vladimir:

- Isaias, tu não é mais caixa. Amanhã ruma pra mesinha do lado, vai pro atendimento de pessoa física. Será responsável pelos empréstimos.

Em-prés-ti-mos – Isaias digeriu vagarosamente o que aquela palavra significava para ele. Morfologicamente a palavra empréstimo não é lá de grande valia, mas ali, dentro do banco, significava ter poder sobre as pessoas. Ninguém vai pedir empréstimo com face fechada e cara de bunda. As pessoas que querem um empréstimo sabem que precisarão do Isaias, pois do contrário não contarão com seu dinheirinho na conta.
No dia seguinte, não mais ouviria as reclamações dos geriatras, ou as intimidações dos office boys. No dia seguinte, planaria como uma pluma carregada pelo vento rumo ao poder.

Terno e gravata! Sim, essa sim é a vestimenta adequada para quem concede empréstimos. Empertigou-se todo o Isaias, tirou as bolinhas de naftalina dos bolsos de seu terno preto e o vestiu. Rumou ao banco, sentou-se na cadeira deixada pelo Vargas, que fora transferido para outra agência, tirou a caneta da lapela – caneta nova, é bom que se diga – apertou no botão de sua extremidade e fez saltar do outro lado a ponta da caneta. Arrumou a gravata e aguardou. Dali a minutos o banco abriria e todos veriam quem era o novo responsável pelos empréstimos.

Assim foi, e uma fila formou-se ante o Isaias que substituíra as espessas lentes dos óculos por duas de contato azuis – sempre quis olhos azuis – e agora, com um sorriso quase obsceno assinava displicentemente os contratos de empréstimo. “Fui com a tua cara, tá aqui teu crédito”, pensava.
No mais das vezes aprovava os empréstimos, mas vez que outra lhe chegavam com um ar tão prepotente quanto o dele próprio e Isaias sem pestanejar dava-lhe um não.
Essa vida era o que pedira a Deus.

Até que um dia ela chegou. Chegou como só ela poderia chegar, prepotente. Sem dar-lhe bom dia, sem olhar-lhe no olho, apenas com a sua minissaia curta, muito curta, sua miniblusa curta, muito curta, suas coxas firmes, muito firmes, seus seios fartos, muito fartos. Tudo muito, tudo bom, essa era ela. “Quero ver os olhos” - pensou Isaias, mas a desgraçada nem sequer deu-se o trabalho de tirar os óculos de sol.

- Quero 20 mil, tio. Preciso comprar meu carroum – pediu e argumentou mascando um chiclete que de longe Isaias conseguia ver, era amarelo.

“Tio”, pensou Isaias. Tudo bem que ela tivesse os seus 20 anos e ele passara disso há no mínimo três décadas, mas “tio” era pejorativo demais. “Não vou dar”, pensou.

Pensou, mas na hora de responder não foi capaz. Tremeu, travou, engasgou, suou, e só conseguiu proferir:

- T-t-ta bem, qual teu nome?
- Isamiiiiim! - disse ela com um sorrisinho malicioso.

Ela sabia que tinha conseguido. Sabia que o desarmara, como sempre. Jamais perdera para um homem em seus 20 anos de experiência e não seria dessa vez.

Isaias, no dia seguinte voltou ao caixa do banco por vontade própria. Era um derrotado, deixara uma moça de 20 anos sobressair-se à sua vontade. Sentia-se mal.

Mal sabe Isaias, que todos os homens do mundo se deixam perder para uma moça de 20 anos. Todos os homens, Isaias!